O antropólogo que explica o Brasil dispara: "Vivemos o delírio de que ter um carro é sinônimo de sucesso"
Depois de estudar o Carnaval, o futebol e o jogo do bicho, o antropólogo Roberto Da Matta descobre no comportamento doentio dos nossos motoristas – em seu desrespeito às leis e ao outro – uma explicação para o estilo de vida brasileiro
Em sua longa missão para entender o homem brasileiro, o antropólogo Roberto Da Matta se embrenhou, na década de 60, em aldeias indígenas dos gaviões e dos apinajés, no interior do Pará e de Tocantins. Hoje, aos 74 anos, ele acredita que pode ser mais revelador se enfurnar no Detran em Vitória (ES) ou ficar parado em um congestionamento na ponte Rio-Niterói.
Convidado pelo governo do Espírito Santo para coordenar uma pesquisa sobre educação no trânsito, o antropólogo saiu da experiência com um livro novo – Fé em Deus e pé na tábua: como e por que você enlouquece dirigindo no Brasil, que será lançado pela editora Rocco em outubro.
Para tentar compreender a epidemia de 40 mil mortes no trânsito por ano (o que nos torna o quinto pior país do mundo nesse quesito), o antropólogo foi até as raízes sociais do Brasil. Concluiu que nosso terrível comportamento nas ruas é fruto de uma sociedade que ainda não aprendeu a ser igualitária e a se libertar de seus traços aristocráticos. De uma elite que sempre rechaçou o transporte coletivo e que adotou o carro como símbolo de superioridade social. De uma crença irracional em uma proteção divina que compensaria os riscos corridos ao volante. De uma mentalidade hierárquica ainda regida pela lógica do “Você sabe com quem está falando?”, segundo a qual obedecer a lei é sintoma de inferioridade – conforme Da Matta já havia demonstrado no clássico livro Carnaval, malandros e heróis, em 1979.
Vítima do seu tema
Como intelectual, Roberto Da Matta sempre preferiu andar na contramão. No fim dos anos 60, quando muitos de seus companheiros protestavam contra a influência americana no país, o antropólogo de Niterói (RJ) rumou aos Estados Unidos para fazer mestrado e doutorado em Harvard. Por outro lado, enquanto outros tentavam entender o Brasil a partir de teses marxistas ou de estruturalistas franceses, ele resgatava o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, passava ao largo do conceito de classe social e tentava construir uma antropologia à brasileira, baseada na observação e compreensão de fenômenos locais como o Carnaval, o futebol, o jogo do bicho.
De 1987 a 2004, o antropólogo foi professor da Universidade de Notre Dame, em Indiana – e se tornou a voz mais ouvida pelos americanos para tentar entender o Brasil. Mas nunca tirou os dois pés de seu país natal. Voltava três vezes por ano e se abastecia de novas ideias. Até que cansou dos EUA e decidiu retornar de vez para morar em Niterói. “A sociedade americana tem coisas fantásticas, mas é uma chatice também. Não existe essa ideia de jogar conversa fora lá. Porque nada pode ser jogado fora, tudo tem que ser consumido.”
Da Matta voltou em 2004, entre outros motivos, para ficar perto dos filhos e netos. Mas teve de lidar com várias perdas na família desde então: o irmão mais novo morreu de câncer; o filho mais velho, comandante da Varig, sofreu um infarto fatal; a mulher chegou a um estágio avançado do Alzheimer. “Tudo isso me deu um sentido mais profundo dos acidentes trágicos da vida. Mas também me fez valorizar mais momentos felizes com a família, os alunos, os amigos do coração.”
“O trânsito reproduz valores de uma sociedade em que alguns podem mais que muitos”
Ele diz que foi salvo pela literatura e pelo trabalho – tanto o de professor da PUC do Rio de Janeiro como o de colunista dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo. E por um cotidiano de pequenos prazeres, que inclui frequentar a academia de ginástica diariamente e cantar standards da canção americana no karaoke vez por outra.
Da Matta abriu tempo na sua agenda para receber a Trip duas vezes: a primeira em seu escritório na PUC e a segunda em um desmanche de carros na zona sul de São Paulo, onde foi feita a foto que abre esta matéria. Nas duas vezes, foi vítima do tema de seu novo livro e ficou preso no trânsito. “Você olha para os lados e só vê uma pessoa em cada carro. É um absurdo. A gente vive esse delírio de que ser dono de um carro é o coroamento do sucesso individual. No fundo, estamos retomando a ideia do nobre carregado por escravos em uma cadeirinha no Brasil colonial.”
Você já estudou sociedades indígenas, carnaval, futebol, jogo do bicho. Por que decidiu fazer um livro sobre o trânsito agora?
Eu comecei a refletir sobre essas questões do trânsito quando fui estudar em Harvard, em 1963. Eu tinha dois colegas africanos. Um deles, da Nigéria, me disse um dia que tinha descoberto um lance fantástico e me chamou para ir à rua mais movimentada de Cambridge (Massachusetts) com ele. Cada vez que ele colocava o pé na faixa de pedestres, os carros paravam. Eu, como brasileiro, fiquei espantado também. Fizemos essa experiência umas cinco vezes. Foi aí que eu comecei a pensar no trânsito como um exemplo das diferenças culturais e como índice de civilidade. Muitos anos depois, em 1985, eu escrevi uma série de artigos para a página 2 da Folha de S.Paulo e, na falta de assunto jornalístico e da moda, resolvi falar do trânsito. Inventei um personagem, o brasilianista americano Richard Moneygrand, para falar por mim. E fiz o Moneygrand afirmar que as pessoas precisavam parar de falar de economia e olhar o trânsito para entender o comportamento de qualquer país, sobretudo o Brasil. Alguns dias depois de o artigo sair no jornal, me liga o Detran de São Paulo pedindo o contato do Moneygrand porque queria convidá-lo para uma consultoria... Eu tive que explicar que eu era o Moneygrand e, depois de alguma perplexidade, eles acabaram me convidando para uma visita no lugar dele. Ao longo dos anos, eu voltei ao assunto algumas vezes nas minhas colunas no Estadão e O Globo, e recentemente o governo do Espírito Santo me chamou para coordenar uma pesquisa sobre educação no trânsito, e foi esse convite que deu origem ao livro Fé em Deus e pé na tábua.
E por que esse título?
Porque esse ditado revela muito do estilo que nós, brasileiros, expressamos no trânsito. Temos essa crença de que somos protegidos por uma força superior, que nada vai nos acontecer de mal. E, se acontecer, existe uma vida depois da morte. Esse é o lado tradicional da história e do comportamento. E temos também o nosso lado moderno, amante da pressa e de correr riscos. Só que fazemos isso justificados por Deus, de modo que podemos ignorar as leis, os outros e as nossas próprias vidas. Até nossas músicas populares legitimam nossa irresponsabilidade ao dirigir. Veja, por exemplo, Roberto e Erasmo Carlos e o que eles escreveram em “As curvas da estrada de Santos”, “Eu sou terrível”, “120... 150... 200 km por hora”, que invocam o risco e a aceleração como partes da conquista amorosa.
O que você descobriu sobre o comportamento dos brasileiros estudando nossos motoristas?
Que nosso comportamento terrível no trânsito é resultado da incapacidade de sermos uma sociedade igualitária; de instituirmos a igualdade como um guia para a nossa conduta. Nosso trânsito reproduz valores de uma sociedade que se quer republicana e moderna, mas ainda está atrelada a um passado aristocrático, em que alguns podiam mais do que muitos, como ocorre até hoje. Em casa, nós somos ensinados que somos únicos, especiais. Aprendemos que nossas vontades sempre podem ser atendidas. É o espaço do acolhimento, do tudo é possível por meio da mamãe. Daí a pessoa chega na rua e não consegue entender aquele espaço onde todos são juridicamente iguais. Ir para a rua, no Brasil, ainda é um ato dramático, porque significa abandonar a teia de laços sociais onde todos se conhecem e ir para um espaço onde ninguém é de ninguém. E o trânsito é o lado mais negativo desse mundo da rua. É doentio, desumano e vergonhoso notar que 40 mil pessoas morrem por ano no trânsito de um país que se acredita cordial, hospitaleiro e carnavalesco. No Brasil, você se sente superior ao pedestre porque tem um carro. Ou superior a outro motorista porque tem um carro mais moderno ou mais caro. Na pesquisa com motoristas de Vitória, a maioria dizia: “Eu bebi, eu sei beber e consigo dirigir assim”. E se outro tiver bebido a mesma coisa? “Aí não, né?” O bêbado, o barbeiro, é sempre o outro. O motorista não consegue entender que ele não é diferente de outro motorista ou pedestre, que ele não tem um salvo-conduto para transgredir as leis. No Brasil, obedecer à lei é visto como uma babaquice, um sintoma de inferioridade. Isso é herança de uma sociedade aristocrática e patrimonialista, em que não houve investimento sério no transporte coletivo e ainda impera o “Você sabe com quem está falando?”.
Você notou diferenças na pesquisa entre o comportamento dos motoristas de São Paulo e do Rio, por exemplo?
A pesquisa foi feita na Grande Vitória, mas acho que a maioria dos resultados pode ser aplicada ao Brasil como um todo. Sobre as diferenças entre Rio e São Paulo, posso falar pelo que eu observo. E acho que os motoristas do Rio são muito mais agressivos que os de São Paulo, aceleram ainda mais, respeitam ainda menos as leis.
“No Brasil obedecer à lei é visto como babaquice, como sintoma de inferioridade”
Você fez o diagnóstico dos nossos problemas no trânsito. Mas você também aponta soluções?
A solução é falar mais em igualdade, discuti-la, ensinar igualdade. Nosso lema sempre foi “os incomodados é que se mudem”. Precisamos mudar isso. Não é só uma questão de fazer novas leis, de multar e reprimir. Porque não adianta nada ter um Código de Trânsito melhor que o sueco, ter tecnologia americana e bulevares franceses se não temos suecos, americanos e franceses para honrá-los e segui-los. O motorista é brasileiro e não obedece às leis. A gente tem que preparar a sociedade para internalizar as normas no seu comportamento. Quando tentaram obrigar as pessoas a usar cinto de segurança em 1985, não adiantou muito porque as pessoas tinham acabado de sair de uma ditadura e não queriam que o governo dissesse mais o que eles tinham que fazer. Mais tarde, nos anos 90, apesar dos lobbies e das restrições de alguns setores, acabou dando certo porque as pessoas já estavam prontas para a lei. Mudaram por causa da lei? Claro. Mas porque viram que o cinto realmente protegia, o que deveria ter sido posto em primeiro lugar; a lei estava atrelada a uma prática social, em vez de estar contra ela.
Matéria completa revista TRIP.
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